26.10.10

A vida é mesmo assim...

Quando era pequena tinha muita dificuldade em descrever minha família. As demais crianças diziam que suas famílias tinham 3, 4, 5 pessoas. A minha tinha 17. Até que me corrigiam dizendo que 'família' eram meus pais e irmãos. Éramos 5 até então. Os outros 12 eram meus avós, tios e primos até então nascidos, todos por parte de mãe. Mas não fazia sentido não contá-los em minha família, pois era assim que os sentia.

Meus avós maternos tiveram 7 filhos. Um deles morreu com 3 meses de vida, o outro com 3 anos. Não sei o nome deles nem o motivo da morte, pois ninguém fala nisso. Para minha avó ela tem 5 filhos, e pronto. O meu tio mais velho teve uma menina 1 ano depois que nasci, e nós crescemos juntas. Ele tentou outros, mas minha tia não conseguiu chegar ao final de nenhuma outra gravidez. Então minha prima e eu éramos como irmãs. Estávamos juntas sempre e somos confidentes até hoje. Ela se chama Aline. E meu tio me chama de riqueza, princesa ou moleca. Fofo.

Meu tio mais velho, o pai da Aline, teve muito dinheiro. Ele era o exemplo de sucesso que tínhamos e era quem provia tudo a quem precisasse, principalmente aos meus avós. Meus pais já precisaram de ajuda, e ele nos estendeu a mão mais de uma vez. O problema é que ele estendeu demais a mão para todos, e um dia perdeu tudo, inclusive coisas que não eram dele. Até o dia que não teve onde morar e foram meus pais que estenderam a mão para que eles morassem em casa. Pouco tempo depois disso meu tio conseguiu alugar uma casa e em seguida minha prima engravidou e nasceu a Maytê, que é minha afilhada. E a mocinha recém chegada trouxe consigo toda a responsabilidade à minha prima, que cresceu à força, mas com toda a dignidade do mundo.

Desde então meu tio tenta se reestabelecer. No último final de ano ele esteve em casa para jantar comigo e ele me disse que já teve tudo o que quis, e que ia conseguir de novo. Que ele ia reconquistar tudo e encher todo mundo de orgulho. Bem, nós temos orgulho. É bem verdade que já tivemos motivos para orgulho zero vindo dele, mas isso passa. O bom orgulho fica.

Meu tio passou os últimos tempos me dizendo que nós ganharíamos muito dinheiro se trabalhássemos juntos. E eu, que não quero dinheiro e só quero amar, dizia para ele que o tempo diria. No fundo eu ajudo meus tios pelo simples desejo de ajudar mesmo, pois se não fossem da minha família eu certamente não faria certos trabalhos que não gosto e não pagam bem. Em abril meu tio me ligou para pedir um trabalhinho simples que se tornou longo e chato. E para não ferir o orgulho dele pedi um valor simbólico, pois ele não queria favor.

Ele apareceu em casa vários domingos pela manhã para resolver questões do trabalho. Sempre me dizendo que estávamos aprendendo, e que nos próximos seria tudo mais fácil e ganharíamos muito dinheiro. Eu sorrio nessas ocasiões, pois eu adoro ajudar mas não tenho pretensão alguma com isso. Então não contrario, não digo 'estou fazendo apenas para te ajudar', pois gosto que as pessoas de minha família tenham metas e gosto de saber que pensam em partilhar sucessos comigo. Daí sorrio, e só. O tempo se encarrega do sim ou do não.

Então meu tio levou o projeto para aprovação e me ligou diariamente até a que fosse aprovado, dizendo que me pagaria assim que possível. A cada telefonema ele dizia 'Riqueza, eu vou te pagar dia tal'. E eu dizia para que não se preocupasse, que eu queria mesmo era aprovar o trabalho. Eu não estava nem aí para o dinheiro, comemorei mesmo foi quando aprovaram o projeto dele e o vi bem sucedido e cheio de promessas de um novo cliente. Esperei muitas vezes durante a vida em ganhar na loteria para ajudá-lo, mas enfim eu encontrava uma forma mais palpável de fazer isso e me senti realizada, como a quem ajuda um pai (que é um papel que ele desempenhou melhor que o meu próprio pai nos últimos tempos). Dia 11 pela manhã meu tio me ligou. Ele me disse: 'Riqueza, me passe o número da sua conta para eu depositar o seu dinheiro. Olha, é uma parte, depois te dou mais'. Eu sorri, mais uma vez, e respondi que não precisava nada a mais. Mas esse é o jeito dele.

Ultimamente eu tenho pânico de atender ao telefone. Há vezes que deixo tocar, respiro fundo e retorno a ligação depois. Não sei explicar, mas tenho medo, é estranho. Então no feriado do dia 12 o telefone tocou, eu deixei tocar. Depois vi que era minha mãe e retornei. Meu tio tinha tido um enfarto muito sério e estava em cirurgia. Corri para o hospital e lá fizemos plantão por dias. A cirurgia correu bem mas meu tio ficou sedado. Um dia subi e disse para ele que se eu soubesse que depositar o meu dinheiro lhe causaria tanto mal estar eu não tinha permitido. Uma lágrima escorreu no rosto dele, não sei se voluntariamente ou não, mas achei graça.

Alguns dias depois não consegui sair do trabalho a tempo de visitá-lo e comecei a passar muito mal. MUITO. Um mal estar que nunca tive na vida. Então liguei pra minha prima para avisá-la que iria no dia seguinte. Ela estava muito feliz, pois ele havia dado um salto na recuperação. Desligamos felizes e em 5 minutos ela me ligou de novo. Não atendi. Liguei em seguida e ela me disse que meu tio havia falecido.

Poucos entendem o meu choro por um tio, pois poucos têm o privilégio de ter uma família como a minha. Doeu muito pensar que ele não conseguiu reconquistar tudo, pois mais que eu duvidasse disso. No fundo ele teve tudo o que importa, mas isso não foi o suficiente para que enxergasse nesse mundo que ele era uma pessoa feliz. Os últimos tempos fizeram-no aparentar uma pessoa triste e muito mais velha do que realmente era. Um fato recente o envelheceu tanto que levei um susto quando o vi num espaço de 15 dias.

Dói muito. Não deve ser a dor da minha prima, da minha tia ou da minha avó. Mas dói pois eu sei que eu, meus irmãos e meus primos éramos filhos para ele. Ele tinha um orgulho de cada um... que só vendo para acreditar. E um bom humor. E disposição para recomeçar a cada dia. E desprendimento para ajudar os outros. E presença. E tantas coisas que nem sei listar.

Eu tenho uma preocupação exagerada com as palavras. Certa vez alguém me disse que a gente deve usar as palavras como se não houvesse amanhã, pois nunca sabemos quando a vida nos pregará uma peça e não seria bom que nossas últimas palavras para alguém fossem palavras de desamor. E no telefonema do dia 11, depois de pegar o número da minha conta, meu tio me disse 'olha, semana que vem te dou mais um pouco, você trabalhou muito. Te amo, princesa.' E eu disse que também o amava. E isso dói, mas me deixa feliz pois o ponto final da minha história com ele terminou da forma como sempre foi: com amor. Que, ao final, é a única coisa que importa.