2.5.08

Sobre uma mulher fora de contexto

Quando eu morava na Rocha a dona do apartamento pediu para deixar uns móveis dela por lá pouco antes de colocá-lo para alugar, de forma a incluí-los do aluguel do futuro locatário. Eu topei, mas chorei de desespero (sem exagero) quando cheguei em casa: os móveis eram tão, tão velhos que eu tinha medo de dormir e no primeiro dia, de fato não dormi. No segundo, cambaleando de sono, deixei a porta aberta e a luz acesa e consegui dormir em alguns intervalos. No terceiro resolvi ser amiga de todos eles fazendo a política da boa vizinhança: olhei para a carinha de cada um e dei o nome que combinava melhor com cada coisa. Assim fiz de amigos a penteadeira Luís XV que era a Princesa Isabel, uma cama baixa com um espaldar alto e trabalhado que se chamava D. Pedro, o armário imenso conhecido como D. João e as várias peças que deveriam compor uma cozinha e ficaram pela casa que atendiam por Dona Benta. E daí por diante tivemos uma convivência pacífica. Desde então notei que é costume meu dar nome às coisas que preciso me familiarizar, assim como os apelidos às pessoas que começam a fazer parte da minha vida.

Durante anos eu sonhei ter um notebook. Assim eu poderia levá-lo até o cliente para uma modificação rápida de projeto, sentar para trabalhar em qualquer ponto de casa, redigir minhas atas de reunião durante as reuniões, enfim... Coisas de workaholic assumida. Duas semanas após a aquisição eu nem havia aberto os programas para testá-lo ainda. Eu realmente o uso em reuniões, nesse frio é bom ficar na cama escrevendo ao invés de sentar no escritório, mas é só em situações como essas que acabo usando de verdade o computador. Nem dei nome para ele ainda, não somos amigos. E olha que ele é até simpático, mas não adianta: gosto da boa e velha workstation.

O carro foi totalmente outra história, pois eu nunca quis ter um carro. Aos 18 anos tirei carta como um presente dos meus pais e logo bati, e então me desinteressei completamente. Nunca tive vontade de dirigir e, pasmem, eu gosto de andar de ônibus. As pessoas costumavam me dizer que quando eu dirigisse com frequência acabaria gostando, que talvez eu não gostasse ainda pois tinha medo, que eu teria uma sensação de liberdade incrível, blablabla. Elas me enganaram. Odeio dirigir. Não sei o que acontece, mas não gosto mesmo. Eu prefiro muito mais sentar no meu banquinho do ônibus e ler meu livro, ouvir música com fones de ouvido, até tirar um cochilo tem sua utilidade. Mas dirigir? O que se faz de útil enquanto se dirige? Sério: não gosto. Penso se não é birra minha, assim como o laptop que sonhei em ter durante anos e agora uso raras vezes. Mas na verdade acho que realmente sou uma pessoa fora do contexto, que consegue ser grande amiga de móveis do século passado e até sente falta deles, mas que não se adapta às modernidades do século XXI.

Então quando digo que queria viver num tempo regresso é dessas coisas que sinto falta: de se fazer um projeto à naquin com prazo justo para amadurecer idéias, de uma época em que as pessoas trabalhavam para viver, onde cartas escritas à mão eram comuns, onde as pessoas não precisavam de orkut para lembrar do seu aniversário e as mulheres não eram desmerecidas por adorar cozinhar ou bordar. Eu poderia usar um vestido rodado preto com bolinhas brancas e uma fita de cetin na cabeça sem chamar atenção de pessoas com fuseaus roxas sob um vestido amarelo limão como se a pessoa estranha fosse eu. Enfim, onde os móveis da Rocha eram contemporâneos e os laptops eram surtos de um louco vidrado em ficção científica.

3 comentários:

Lucca disse...

Ah... juro que lágrimas me escorreram dos olhos com esta sua maravilha de texto, Cá! Quem devia organizar uma seleção e montar um portfólio é VOCÊ!
Quantos, quantos sentimentos compartilhados!
Eu TAMBÉM me utilizo do mesmo recurso dos nomes e apelidos e, Deus, como eles SIGNIFICAM pra mim!
As cartinhas são outra coisa de que sinto enorme saudade - anos atrás e minha amiga Carol e eu não passávamos as férias escolares sem trocarmos correspondências! Tão queridas e tão vivas, porque escritas por nossas mãos...
Ai, ai, ai...
Cá, como eu TE AMO e te ADMIRO, amiga querida.
E como eu ME ORGULHO de sermos tão "gêmeos" mas, ainda assim, de você ser TÃO MELHOR que eu!
Aprendo tanto com você!
SEMPRE!
E que Deus me permita continuar aprendendo ao longo de muitos anos mais, ainda.
Queria, depois disso tudo, que isso não fosse um comentário num blog, mas uma cartinha entregue em sua mesa, no trabalho: um lugar confortável e amistoso onde a coisa mais moderna fosse uma máquina de escrever elétrica! =´)
Beijos, madeimoselle!

Catita disse...

HAHAHAHAH
E eu não faria nem questão que ela fosse ELÉTRICA.
E pare de bobeira, que essa coisa de 'melhor que eu' não cola, 'Manel Theodoro', seja lá quem for essa peça! :P

Dan Vícola disse...

Mas claro que é, amore!
Você é A EVOLUÇÃO DA ESPÉCIE, compreende?
Almost perfect.
;-)
DIOSA!
Amoooooo absurdos!
"Manel Theodoro" é um sujeito-exclamativo do meu discurso. ;-)
Beijooooooooos