27.10.07

Quando a soma do tempo é muita

Minha tia avó faleceu hoje, após uma longa e dura convivência com o câncer. Ela era a irmã caçula da minha avó.
Minha avó é uma mulher que passou por muitas coisas. Aos 16 ela fugiu de casa com o meu avô para fazer pirraça ao mocinho de quem realmente gostava, e isso lhe rendeu uma surra e um casamento. Na realidade, ela conta, fugir era uma forma de casar: não havia possibilidade financeira de se programar o matrimônio, e fugindo as mocinhas eram obrigadas a devolver a honra à família, casando.
Meu avô bebia e tinha o hábito 'romântico' de surrar minha avó. Por qualquer motivo: por ter falado algo atravessado ou pelo absurdo de estar grávida novamente. Até que largasse a bebida, minha avó passou maus bocados nesse sentido. E olha, meu avô era imenso: a sua impressão digital no RG era maior que a foto 3x4! Eu levei algumas palmadas dele na infância, de levinho, mas desejei que morresse depois disso. Ele enfartou dias depois, me senti altamente culpada e pedia à Deus para voltar atrás, dizendo que só desejei aquilo de brincadeira. Ele ouviu.
Os dois tiveram 7 filhos, 5 sobreviveram. Um deles morreu já crescido, quando criança. Os outros foram a primeira geração que cresceu longe da roça, gritando por liberdade, que era coisa que ela não saberia reconhecer nessa vida.
Com 50 anos de casados, meu avô partiu desse mundo. E me lembro de chegar à casa dela de madrugada para dar colo àquela pessoa que me ninou durante a infância inteira, e dela dizendo no meu ouvido 'que Deus me ajude, que Deus me dê forças, eu não vou aguentar!'. Mas, mais uma vez, ela aguentou. E passados 6 anos desse golpe que foi o maior em sua vida, ela ainda chora.
Hoje um ciclo se fechou, e minha avó está sofrendo tanto quanto pela perda daquele homem que aprendeu a amar pela convivência. Sua irmã caçula era a única pessoa da sua geração que ainda estava nesse mundo. Com sua morte toda uma existência está sendo questionada, todas as reflexões sobre a vida estão batendo à porta de Dona Leondina. E à minha também.
Pois hoje pensei no quanto a vida pode ser cruel conosco, no quanto ela é obscura nesse sentido durante a adolescência e no quanto ela tem mostrado a mim que essa facada no peito, essa dor de perda maior que qualquer dor, me será dada muitas vezes. E não sabemos quando, nem por quem estaremos chorando, mas estaremos. E em algum momento nos daremos conta que a nossa linha também está chegando ao fim, e talvez até desejemos isso ao invés de sentir a facada novamente.
Minha avó sobreviveu diante de muitas situações duríssimas, e acredito que não será diferente. Mas ela tem fé, ela acredita em algo maior que a ajuda, que dá forças, que a faz aguentar. E eu, sinceramente, não sei como é possível alguém que não tem isso conseguir se reerguer.

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