Post tardio, mas de grande utilidade para meus conhecidos que desejam conhecer a cidade dos Soteropolitanos.
Sinceramente, fui à Salvador empolgada com o trabalho e nada empolgada com o lugar. Quem me conhece sabe que praia não é minha praia, e que o calor é o segundo motivo que mais colabora com minha falta de humor, perdendo apenas para a TPM.
A chegada já me deixou assustada com duas coisas: o calor (esperado, mas não achei que seria recepcionada por 40ºC) e os soteropolitanos ao volante. Os congestionamentos já se assemelham aos de São Paulo, mas as pessoas são completamente loucas no trânsito e a falta de educação deles na direção assusta até mesmo nós que temos os maiores congestionamentos do país: as pessoas não sabem o que é faixa, até por isso não dão sinal para qualquer movimento mais brusco numa rua. E o mais intrigante é que isso é tão comum que ninguém buzina para as barbeiragens alheias. Daí que percebi o quanto somos educados no trânsito aqui.
Sobre o calor, não tenho palavras para descrevê-lo. Eu não peguei um dia sequer cuja máxima fosse inferior a 35ºC. Ao acordar o sol já ardia, e quando saía de meu quarto para o elevador do hotel num percurso que não durava 30 segundos as gotas de suor começavam a tomar conta de partes do meu corpo que eu nem sabia que existiam. Andar nas ruas de Salvador com uma calça jeans foi a experiência mais bizarra da minha vida, e foi a primeira vez que vi que minhas pernas poderiam escorrer, ou que eu poderia literalmente torcer uma peça de roupa molhada de suor sem que isso fosse apenas uma força de expressão. Aliás, tudo o que usamos aqui como força de expressão para falar de calor eram literais para as queixas sobre o calor de lá. E não pensem que era por que sou galega, o pessoal local reclamava tanto quanto eu! Daí a leseira, da qual não abro mais a boca para criticar. Trabalhando um turno de 8 horas normais eu sentia como se estivesse duas noites sem dormir, tal era o cansaço que o calor me dava. Insano. Me sinto patética em lembrar dos casaquinhos que levei.
Talvez por estar acostumada com a camuflagem das favelas por onde passo em São Paulo, fiquei impressionada com a quantidade e o tamanho de invasões de Salvador. Não chega a ser o Rio, mas está quase empatando. E a cidade é geograficamente tão acidentada que realmente salta aos olhos passar numa avenida ampla e movimentada e estar cercado por morros cravejados de casinhas humildes com escadarias que não vemos o fim subindo por diversos pontos.
Por outro lado, a arquitetura histórica é fantástica, e é impossível dissociá-la da história da cidade: a cidade foi crescendo e o estilo das épocas foram se imprimindo nos casebres, nos solares, nos fortes, nas igrejas. Salvador tem tantos sítios históricos que se torna paisagem comum. Daí meu quarto susto: com exceção do Pelourinho que teve uma intervenção recente, tudo é abandonado, invadido, deteriorado. No começo eu fiquei revoltada com o poder público, mas depois percebi que não há esforço público que consiga restaurar uma cidade histórica do tamanho de Salvador. E deu um baita nó no coração ver tanta coisa perdida.
Trabalhei num lugar maravilhoso, e esse projeto é o trabalho mais especial que já tive contato na vida. A rua tem toda característica de uma cidadezinha de interior, mas as casas ficam coladas na beirada da cidade alta, no limite da encosta com 70 metros de altura, com uma vista mágica para a Baía de Todos os Santos. Em 10 minutos a pé entre subidas, descidas e muitas escorregadas nos paralelepípedos tão gastos pelo tempo, se chega ao Pelô. E toma outro susto: aquilo é uma Disneylândia onde todos te pegam pelo braço para tentar te vender correntinhas, fitinhas, miudezas folclóricas. Eu fico imaginando um estrangeiro de cultura bem fria com tanta gente o tocando, deve ser muito assustador! E meu amigo, loirinho de olhos claros e extremamente cordial, era um prato cheio. Fomos abordados n vezes, e em todas elas meu amigo parou para conversar. Em determinado momento achei que estaria mais segura se sozinha. Descendo o Elevador Lacerda fomos pegos por um círculo de ciganas querendo ler nossos destinos. Consegui convencer aquela que me puxou de que não acreditava em destino, mas meu amigo parou para escutar. E eu fiquei conversando com a 'minha' cigana quando ao final ela me disse: 'muita felicidade para vocês!', ou algo assim, entendendo que eu e meu amigo formávamos um casal. Então continuo não acreditando em destino, e muito menos em quem diz saber dele.
Outra decepção foram as praias. Demorei dias para encontrar de perto com o mar, e o cheiro de maresia que eu adoro quando vou ao Litoral não chegou ao meu nariz nem quando fui à orla. Salvador tem boa parte do mar chegando em áreas portuárias, encostas e praias de pedras. As praias mais afastadas ao Sul foram tomadas por invasões, e só passando Itapoã é que encontrei algumas praias com cara de praia, que estavam tomadas por algas. Imaginava Salvador como uma grande Praia do Forte, linda, mas não é bem assim... São poucos pontos com faixas de areia, e quando cheguei a essas praias maiores, elas eram tomadas de barracas onde vivem pessoas, que trabalham e moram lá e despejam seu esgoto direto no mar. Triste. A cidade toda é bem suja, e nos locais por onde fiquei trabalhando o cheiro mais marcante é o de urina. E além da urina, a sujeira é muita, em qualquer bairro. Talvez por isso lavam o Bonfim, o Rio Vermelho, Itapoã e tantos lugares mais! Brincadeiras à parte, a sujeira é um ponto muito negativo da cidade.
A exploração do turismo é uma coisa engraçada. Me pergunto o que se considera 'turístico', pois julgo que a coisa mais interessante para se fazer numa cidade estranha é conhecer o estilo de vida das pessoas de lá e seus costumes, como elas se relacionam com a cidade em que vivem e como a cidade responde a tudo isso. Tudo bem em ir ao Bonfim, tudo bem comer moqueca, tudo bem ir ao Elevador Lacerda, mas acho ridículo ver as Baianas vestidas com aquelas fantasias de 3 séculos atrás pedindo 1 real para tirar uma foto com você, como se fosse essencial sair de Salvador com uma foto de coisa que não existe mais. Então não me faz muito sentido o Pelourinho, que é o dos principais cartões postais da cidade, ser o que é. É desconcertante chegar num lugar com aquela magnitude e ver 1 milhão de lojinhas iguais vendendo pseudos abadás com fitinhas do Bonfim. Se querem saber, a melhor parte da minha estada foi sentar na Biblioteca Municipal e ler os jornais do bairro desde 1960, ouvindo Bethânia a tarde toda junto com a conversa fifi das bibliotecárias.
A cidade é perigosa. O André perdeu a máquina fotográfica que nem tinha terminado de pagar num passeio rápido para um trombada . E diversas vezes as pessoas que nem me conheciam me alertavam na rua para meu jeito de segurar a bolsa, ou locais onde eu não deveria me atrever a fotografar. E isso é uma caractetísca do soteropolitano: eles se sentem íntimos de qualquer pessoa e falam com um estranho como se estivessem aconselhando um irmão, primo, sobrinho. Era algo para se deduzir de um povo que chama o Pelourinho de Pelô, Caetano Veloso de Caê, Daniela Mercury de Dani e Cláudia Leite de Claudinha. Eles são acolhedores, até demais. Logo que cheguei fui recebida por uma paulista que me dizia justamente que a hospitalidade do povo baiano era sem igual. Em poucos instantes alguém já te convida para ir à sua casa, a passar uma temporada na casa do primo que fica na praia não sei qual, e toda vez que eles te levam para sair resolvem mudar o itinerário para visitar um fulano novo com o simples intuito de te apresentar. Isso aconteceu muitas vezes, e em todas torci o nariz quando fui informada da alteração de planos, mas em todas me surpreendi com o carinho com o qual recebem um estranho em casa e no quanto eles fazem questão de te fazer sentir-se em casa.
Somando isso à gastronomia local, eu sinceramente esquecia dos pontos negativos. Se não fosse a mania que têm de colocar coentro em tudo o que se faz eu teria passado muito bem. Comi tanta moqueca, de todo o tipo de coisas que se possa imaginar, vatapá, caruru e tanto acarajé que considero um milagre voltar à São Paulo depois de 1 mês sem ter ganhado um quilinho extra. Acarajé eu comia no pé do hotel, pois em Salvador você encontra barraca de acarajé em cada esquina, como temos de cachorro quente aqui. É o que salva o cheiro de urina da cidade: o disfarce do dendê. E descobri que adoro dendê. Aliás, lá o dendê é chamado simplesmente de azeite, e o nosso azeite é 'azeite doce' ou 'óleo de oliva'. Eu paguei mico pedindo azeite para colocar na salada mais de uma vez, enquanto o garçon me olhava como se visse uma louca que gostasse de dendê no alface. Enfim, o cheiro de dendê é a minha lembrança de Salvador.
Pouco antes de vir embora o pessoal com quem trabalhei perguntou se eu sentiria saudades de lá. Com o calor que fazia, não consegui disfarçar minha satisfação em voltar para casa, e estava feliz por dar um tempo ao axé que tomava conta dos meus ouvidos na cidade onde é carnaval o ano todo, na semana antecedente ao carnaval de fato. Não posso negar que eu sentiria falta da moqueca e do acarajé, mas no entanto estou na cidade com o melhor circuito gastronômico do país, e batendo uma saudade do dendê eu dou um pulinho num bom restaurante. A saudade mesmo fica por conta das ótimas pessoas que conheci, que fazem festa por qualquer pequeno motivo e que diante de tanta coisa negativa conseguem encontrar motivos sem número para celebrar. Essa sim é a melhor coisa de Salvador: um povo daquela pele escura linda e que faz morrer de inveja qualquer branquelo sem graça como eu, que de tanto ter sofrido pela escravidão consegue sorrir ao estranho e fazer música para qualquer pequena coisa, numa eterna ode de quem reconhece de onde veio e o quanto sofreu para poder andar livremente nas ladeiras de paralelepípedo.
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6 comentários:
Você é uma das melhores blogueiras que existem, e insiste em não querer ser "encontrada" rs...
Seu comentário é café com leite, MD!
Amore!
Eu faço eco às palavras do MD.
Adooooooooooro sua delicadeza, inteligência e eloquência para narrar/descrever/dissertar sobre qualquer sorte de assunto!
Ah, se todos fossem como você!
Eu me senti em Salvador! - inclusive compartilhando das suas MESMÍSSIMAS sensações/observações/reflexões.
Porque, entre nós, cê sabe: Cátia falou, Daniel assina.
Saudaaaaaaaaaaades absurdas!
Beijos, beijos, beijos!
hum... discordo de algumas coisas que falou da Bahia! Ok, estive lá durante o Carnaval, mas fiquei alguns dias a mais depois da folia baiana e pude sentir um pouco o cotidiano baiano, seja nos ônibus ou perambulando pelo bairro da Barra. e outra coisa: não senti o tal cheiro de mijo que todos dizem que Salvador tem...
quanto aos cuidados, no Carnaval, época em que mais tem assaltos por lá, me senti extremamente seguro. É preciso entender que é uma cidade grande como a capital paulista...
adorei Salvador... e acho que temos que falar da cidade pessoalmente...
só sei de uma coisa: no ano que vem, estarei lá novamente!
Dan, seu comentário também é café com leite! rs
Alanzito, que boa surpresa você por aqui!
Sobre Salvador, sinta-se privilegiado: a segurança e o cheiro de xixi foram um alerta dos próprios soteropolitanos antes mesmo de se tornar uma constatação minha. Mas, de qualquer forma, o clima carnaval, Olodum, Axé não é pra mim... Nem praia é pra mim! hahaha
Talvez por isso você deva ter mais motivos para gostar da cidade do que eu. E, pôxa, a Barra é o melhor bairro de Salvador! Não que eu tenha detestado, não é bem isso, só me decepcionei com a imagem errada que formei de Salvador e o calor era de lascar. De qualquer forma, meu lugar é aqui. E podemos discutir isso tudo comendo um belo acarajé! ;)
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